ARTIGO
Gestaltic style of clinical intervention in neurotic adjustments.
Consiste o presente
artigo numa leitura sobre o estilo de intervenção que se deixa reconhecer na
prática clínica da Gestalt-terapia, tal como esta é caracterizada na literatura
de base da abordagem, especialmente no que diz respeito aos ajustamentos
neuróticos. Nosso propósito é esclarecer em que sentido a prática clínica é,
para a Gestalt-terapia, uma experiência de campo e em que sentido os temas da
frustração habilidosa e do suporte comparecem nos contextos em que podemos
perceber a presença de um ajustamento neurótico.
Palavras-chave: ajustamento
neurótico; inibição reprimida; frustração habilidosa; experimento; experiência
de campo.
The present article
consists of a reading on the style of intervention acknowledged in the
Gestalt-therapy clinical practice, such as it is characterized in the base
approach literature, especially what concerns neurotic adjustments. Our purpose
is to make clear in which sense the clinical practice is, for Gestalt-therapy, a
field experience and in which sense skillful frustration and support themes are
present in the context in which we can sense the presence of a neurotic
adjustment.
Keywords: Neurotic
adjustment; repressed inhibition; skillful frustration; experiment; field
experience.
Não são poucos, mesmo
entre os próprios praticantes da Gestalt Terapia, aqueles que consideram tal
abordagem clínica uma coleção de técnicas úteis à prática psicoterapêutica
concebida, entrementes, a partir de um outro referencial teórico, dado que a
Gestalt-terapia estaria desprovida de um. E não se trata aqui de fazer a
refutação desse equívoco - uma vez que não se pode argumentar contra aquilo que
não faz sentidoi. Trata-se, antes, de mostrar o quanto os recursos
clínicos adotados pelos gestalt-terapeutas - que levam em conta o sentido ético
dessa prática clínica e, portanto, o primado daquilo que nela gera uma deriva,
precisamente, o "outro” - estão articulados com as reflexões que, já na
fundação da abordagem, se faziam presentes: a teoria do self, a teoria da
inibição reprimida, a teoria da neurose como perda das funções de ego para a fisiologia
secundária, as quais, dentre outras, são tão somente leituras possíveis daquilo
que se estabelece espontaneamente na sessão terapêutica. Ademais, é preciso
acrescentar não haver, na história da Gestalt-terapia, qualquer sorte de
recomendação sobre quais técnicas usar ou evitar. Afinal, sendo a vivência
clínica uma experiência de campo em que se constitui um sistema-self e sendo a
espontaneidade a principal propriedade desse sistema, é de se supor que as
formas de "pontuação do como” estabelecidas pelos clínicos sejam
fundamentalmente intervenções criativas e exclusivas a cada ajustamento vivido.
Ainda assim, podemos encontrar no livro de fundação da abordagem uma reflexão
sobre o sentido ético de algumas formas de ajustamento e de intervenção
estabelecidos em regime clínico - e que podem pautar aquelas inventadas por nós
mesmos a cada nova sessão.
A chegada dos consulentes é uma ocorrência de extrema relevância
para o clínico. Afinal, já nesse "contato inicial” o clínico pode perceber
- em função do lugar que é ou não convidado a ocupar - a presença das funções
de self
ou
o comprometimento de alguma delas.
Evidentemente, essas funções e respectivos comprometimentos não
são ocorrências "visíveis”. O que se mostra de modo visível são alguns
cerimoniais, alguns comportamentos socialmente sancionados, especialmente pela
"cultura” psicoterapêutica, como por exemplo: as posturas sedutoras
("ouvi dizer que o doutor é...” ou "não acredito em
psicoterapia...”), as posturas desafiadoras ("o que o doutor sabe sobre
isso?”), posturas exibicionistas ("já fiz seis anos de análise...” ou
"tenho algo horrível para lhe dizer...”), as autovitimizações ("não
sei se posso pagar o valor de sua sessão...”) dentre outros infinitos
expedientes, os quais sempre carregam, como sua dimensão invisível, um "apelo” a nossa participação. Ou,
então, somos surpreendidos pela total ausência de apelos, como se o consulente não tivesse consulta a fazer, como se não
tivéssemos nada a lhe oferecer. Nossa presença para ele é tão contingente
quanto à do quadro artístico pendurado na parede. Ou, ainda, deparamo-nos com
consulentes, sobretudo usuários da rede pública ou dos serviços substitutivos
de saúde, os quais, não obstante tentarem apelar por nossa intervenção,
comportam-se como se não soubessem fazê-lo, como se lhes faltassem aqueles expedientes socialmente sancionados.
De toda sorte, essas formas "visíveis” de apresentação geram
um "efeito invisível” em nós mesmos (como clínicos). Somos convocados a
ocupar um lugar em um "campo” pelo qual não deliberamos. E quanto mais
cedo nos deixamos conduzir a esse lugar, mais rapidamente vislumbramos, como a
um "outro” com quem, ainda assim, não podemos coincidir: i) tentativas
criativas de aniquilação ou disfarce de excitamentos ansiogênicos, ii)
tentativas de preenchimento ou articulação de excitamentos que não são sentidos
como se fossem próprios, iii) buscas desesperadas por dados que não estão
disponíveis. Quanto mais cedo nos deixamos conduzir a esses lugares para os
quais estamos sendo convocados, mais rapidamente percebemos o tipo de
ajustamento que os consulentes estão tentando estabelecer e, por consequência,
qual função do
self em cada qual está comprometida. Por outras palavras: a percepção
das funções comprometidas, dos ajustamentos estabelecidos, da satisfação
possível alcançada por cada consulente, tudo isso passa pela capacidade que nós
terapeutas devemos ter de nos deixar descentrar. Ou, ainda, a percepção desses
"invisíveis” tem relação, para nós clínicos, com nossa passividade ao
campo.
No caso dos consulentes em quem testemunhamos buscas desesperadas
por dados que não estão disponíveis, se os dados realmente não estiverem
disponíveis (por exemplo, um pouco de alimento que pudesse ser oferecido a um
desempregado subnutrido, em crise de hipoglicemia, encaminhado ao psicólogo de
um posto de saúde), a função de ego neles não poderá ser desenvolvida.
Consequentemente, o contato não poderá acontecer e nada poderá ser assimilado,
nem mesmo uma identidade objetiva, base constitutiva da função personalidade. É
provável que estejamos diante de um ajustamento aflitivo. Não é nosso objetivo,
por ora, dissertar sobre os ajustamentos aflitivos e sobre as formas de
intervenção gestáltica nesses casos. Mas desde já alertamos para a importância
dessa clínica e a urgência em desenvolvê-la junto à nossa comunidade.
Se pudermos, entretanto, observar junto aos consulentes uma função
de ego desempenhando uma ação qualquer, é preciso atentar para qual lugar essa
ação nos reserva (enquanto terapeutas). Ou essa ação acontece à revelia de
nossa presença no campo; o que não significa que, em alguns momentos, não
possamos ser convocados a atuar como "figurantes”, meros colaboradores dos
reais protagonistas da ação, precisamente: as funções de ego que estejam
fazendo um ajustamento psicótico (como no caso daqueles consulentes que tentam preencher ou articular excitamentos
que eles próprios não demonstram sentir como seus). Ou, então, essa ação nos implica diretamente como agentes
"co-adjuvantes”, como se a função de ego nesse campo dependesse de nossa
participação efetiva - caso em que, provavelmente estaremos envolvidos em um
ajustamento neurótico. Esse é o caso daqueles consulentes que, para aplacar a ansiedade
decorrente de um excitamento que eles próprios estejam a inibir de maneira
habitual, "apelam” por nossa intervenção direta, "apelam” para que
assumamos uma determinada função em favor da aniquilação da ansiedade por eles
sentida: "modelos” a quem eles possam imitar na esperança de preencherem o
vazio ansiogênico que os afeta; "mestres” que os ensinem a suportar uma
ansiedade que não pode ser mais ignorada; "réus” em quem reconheçam a
causa da ansiedade que os atinge; "cuidadores” de quem esperam um
linimento que, enfim, abrande a ansiedade que os torna vítimas;
"admiradores” em quem encontram confirmação para continuar adiando a realização do
excitamento ansiogênico.
No caso dos ajustamentos neuróticos, os únicos que nos interessam
por ora,
os
apelos dirigidos ao clínico estão frequentemente relacionados às diversas
formas de interrupção da expansão da ansiedade pelas etapas do processo de
contato. O apelo é ele mesmo a ação da inibição reprimida, que assim tenta
pulverizar a ansiedade decorrente das ameaças de deflagração do excitamento
inibido desencadeadas pela situação clínica. Ou, então, o apelo é a própria
realização social da inibição reprimida em regime clínico. Não se trata, ao
menos nas primeiras sessões, de um ataque ao clínico, mas de uma tentativa de
inclusão deste.
O clínico é requisitado a participar dos ajustamentos neuróticos
desempenhados pelo consulente. Ele é convidado a ajudar o consulente no
trabalho de produção de um sintoma, o qual mais não é que a própria interrupção
do excitamento ansiogênico nas diversas etapas do processo de contato.
Quando o consulente dirige ao clínico o apelo "seja meu
mestre” é à presença da ansiedade no momento do "pré-contato” que se trata
de aplacar. Caso exercesse a função de mestre, o clínico estaria corroborando
um ajustamento introjetivo. Quando dirige ao clínico o apelo "seja meu
réu” é à presença da ansiedade no momento do "contatando” que o consulente
tenta dissipar. O clínico que assumisse essa função estaria ratificando um
ajustamento projetivo.
Também o apelo "seja meu cuidador” diz respeito ao momento do
"contatando”. Mas, agora, o clínico é convocado a validar a retroflexão
que o consulente imputa a si mesmo, também com o propósito de aniquilar a ansiedade.
No caso de o apelo ao clínico ser "seja meu fã”, o consulente
está tentando implicar o clínico em um ajustamento egotista. Caso validasse às
múltiplas formas de controle que o consulente tenta exercer sobre sua própria
vida, o clínico pouparia o consulente de ter de enfrentar a ansiedade implicada
no "contato final”.
O apelo "seja meu modelo”, a sua vez, é uma tentativa do
consulente de empenhar o clínico no trabalho de dissolução da ansiedade advinda
do fato de não haver, para o próprio consulente, um excitamento disponível;
haja vista a inibição reprimida ter interrompido a assimilação do excitamento
no momento do "pós-contato”. O consulente tenta preencher esse vazio
incorporando algo que ele solicita do próprio clínico. Caso fornecesse esse
modelo, o clínico estaria ratificando um ajustamento confluente.
Mas, uma vez atingido
pelo apelo que se configura no campo, uma vez descentrado no ajustamento que é para ele algo inopinado, o
gestalt-terapeuta começa a perceber um modo de funcionamento nas mais das vezes
ignorado pelo consulente. Se esse descentramento se produzir mais de uma vez, o
gestalt-terapeuta terá então atingido, mais além do "assunto”, da
"queixa”, enfim, das "personalidades” promulgadas pelo consulente, a
vigência de uma ansiedade, de um excitamento inibido, o qual se presume associado a uma
forma específica de
inibição. O gestalt- terapeuta terá atingido a vigência de algo "outro”.
Trata-se de algo "outro” não apenas para o clínico, mas, também, para o
próprio consulente. Razão pela qual, não cabe ao clínico gestáltico identificar
o excitamento inibido, ou a origem da inibição apresentada, tampouco exigir que
o consulente o faça. Ao clínico gestáltico somente interessa pontuar, no curso
da própria sessão, o momento exato em que esse "estranho” esteja se
repetindo, o momento preciso em que ele torne a se produzir. Tal pontuação concorrerá para uma eventual implicação
do consulente em seu próprio ajustamento. O campo clínico estará configurado.
Uma figura "estranha”, "outra”, estará sinalizada. O que dará início
à clínica gestáltica, ao trabalho não do clínico, mas do consulente.
A pontuação estabelecida pelo clínico relativamente ao momento em
que ele mesmo é surpreendido pela repetição de um inesperado, no aqui/agora da
sessão, é a pedra fundamental de todo e qualquer processo de intervenção
gestáltica nos ajustamentos neuróticos. Essa pontuação pode acontecer em
qualquer momento da primeira sessão, ou depois de transcorridas muitas sessões.
O importante é que o clínico se deixe afetar por tal inesperado, no momento em
que ele estiver se repetindo, porquanto ele é o "objeto” específico a
partir do qual poderá propor, ao consulente, um contrato terapêutico.
No caso da clínica dos ajustamentos neuróticos, não interessa ao
clínico dar conta dos assuntos ou problemas formulados pelo consulente em
termos de queixa; ainda que, no início, antes do estabelecimento do contrato, o
consulente possa esperar soluções para os problemas corriqueiros que esteja a
formular. Mas, tão logo o consulente estabeleça na sessão um ajustamento de
evitação ou de criação em que ele próprio se surpreenda, o clínico tem a
ocasião ética de esclarecer, enfim, qual é o "objeto” da clínica
gestáltica dos ajustamentos neuróticos, precisamente: a pontuação das
"formas” (gestalten) de evitação, ou de criação, nas quais, por obra do
próprio consulente, o clínico foi envolvido. Evidentemente, o clínico vai se
servir dos próprios elementos discursivos e comportamentais fornecidos pelo
consulente para pontuar a eventual manifestação de uma forma de evitação. Ainda
assim, deixará claro que a questão clínica pela qual o consulente pagará não
diz respeito às representações objetivas produzidas por este; diz respeito sim
à manifestação de algo espontâneo, surpreendente, que foge ao controle das
representações deliberadas estabelecidas seja pelo clínico seja pelo
consulente.
Mais do que
isso, o clínico esforçar-se-á para mostrar que tais formas não existem em um
lugar prévio ou iminente, como se fossem conteúdos a serem descobertos ou
buscados. Ao contrário, ao clínico cabe esclarecer que o objeto da terapia
gestáltica (apareça ele como um ajustamento neurótico, como uma formação
reativa ou como uma retomada da criatividade) é uma ocorrência atual, imanente
ao aqui/agora da sessão, o que não significa que não inclua vivências passadas
e expectativas futuras. Afinal, o aqui/agora é para o clínico um campo de
presença; e os horizontes de futuro e de passado são desse campo dimensões co-participantes.
Rigorosamente falando, o aqui/agora é a maneira pela qual se dá o
"contato” entre nossos horizontes de passado e futuro. É a própria
realização desse contato, que não é senão uma síntese de passagem apoiada em um
dado material
atual.
A sessão terapêutica é esse dado, uma oportunidade para o consulente se
apropriar do modo como ele vive essa passagem entre um passado imutável e novas
possibilidades futuras. E o objeto da experiência clínica, a própria vivência
atual da inibição ou da realização daquela passagem, daquele fluxo de contato
temporal na atualidade da sessão.
A noção de aqui/agora como campo de presença fundamenta, ademais,
uma leitura gestáltica do que seja o tempo da sessão. Do ponto de vista da
experiência de contato, o tempo da sessão não diz respeito ao relógio, ao
cronômetro, mas à configuração de uma síntese de passagem, por cujo meio se
revele uma "gestalt”;
seja
esta uma forma
habitual de inibição dos próprios excitamentos, uma formação reativa desencadeada pela inibição reprimida ou uma
criação inédita a partir de um fundo de angústia.
O tempo de uma sessão é, portanto, o tempo de revelação de uma "gestalt” em que há
manifestação de uma inibição reprimida, ou a superação dela. Tal pode levar
segundos, como pode não acontecer por meses a fio. Isso não significa que o
clínico tenha de abandonar o relógio. A forma de trabalho de Perls (1973, p.
106), nesse particular, ajuda-nos a elaborar uma compreensão sobre a forma de
utilização do tempo cronológico em benefício da manifestação do tempo do contato (tempo vivido). Em
seus trabalhos de demonstração (workshops) - os quais mais não eram que "terapias individuais em
contextos de grupo”, Perls (1973, p. 105) não cronometrava os atendimentos.
Quando muito, atinha-se a um limite máximo, que variava de grupo para grupo e também em
função do número de participantes em cada grupo. Mas, tão logo uma forma de
ajustamento evitativo fosse flagrada e dela o participante se apercebesse, ou
um ajustamento criador fosse estabelecido para a surpresa do próprio
consulente, o atendimento era encerrado. Às vezes isso levava minutos ou menos
do que isso. Razão pela qual, é frequente os clínicos contratarem, com seus
consulentes, sessões que tenham um teto cronológico máximo, o qual pode ser
muito variado. Mas o estabelecimento desse teto não implica que ele deva ser
cumprido. Implica apenas que, a cada sessão, clínico e consulente disponham de
até ‘X’ minutos para pontuarem o surgimento de um inesperado, a configuração de
um ajustamento evitativo, de uma formação reativa ou de uma criação a partir de
um estado de angústia. Qualquer um dos dois pode fazer essa pontuação. E quando
ela estiver estabelecida, é hora de fechar a sessão, mesmo que o teto
cronológico não tenha sido atingido. A continuidade da sessão não agregaria
mais do que um falatório irrelevante, não raro devotado a solapar as conquistas
da sessão até aquele momento.
Essa forma de entender o tempo da sessão também tem efeito sobre
os temas da assiduidade e do atraso. Resguardado o acordo que possibilite, ao
consulente e ao clínico, um tempo confortável de antecedência para cancelamento
das sessões, as faltas não comunicadas constituem sessões realizadas, pelas
quais o consulente irá pagar. Afinal, enquanto uma alta não for solicitada
(pelo consulente) ou comunicada (pelo clínico), os "horários” de sessão
contratados continuam surtindo efeito no clínico. E é dever ético do clínico
"devolver” ao consulente esses efeitos para que este os elabore,
sobretudo, por meio do pagamento.
O mesmo vale para os atrasos, que devem ser religiosamente
descontados do tempo contratado para cada sessão. Em rigor, um consulente nunca está atrasado para a
sessão. Ele simplesmente "deliberou” usar o tempo da sessão de outra forma; o que, ainda
assim, surte um efeito no clínico, ainda assim o faz aguardar... A recíproca,
entrementes, não é verdadeira. O retardo do clínico deve ser ressarcido, uma
vez que, durante o período em que estava atrasado, o clínico não se ocupava do
consulente. Portanto, não é ético que o clínico considere os atrasos que ele
próprio provocou terapêuticos. A decisão de como ocupar o tempo da sessão é prerrogativa exclusiva do consulente
- a menos que, antes do fim da sessão, o clínico possa pontuar, no consulente,
a manifestação de um ajustamento de evitação, o qual, vale lembrar, é o objeto
da terapia, o "fim” da sessão (na dupla acepção do termo fim: término e
finalidade).
Da mesma forma, o intervalo entre as sessões, assim como o tempo
do tratamento não são itens que possam ser, do ponto de vista do tempo vivido, acordados
previamente. A necessidade das sessões, assim como a compreensão do momento da
alta - da conquista da autonomia em relação ao clínico - são fenômenos de
campo, sobre os quais o consulente deve deliberar. Exceção para o período de
férias ou para a eventualidade de o clínico não se sentir mais disponível para acompanhar o
consulente. Afora esses casos, cabe ao consulente, portanto, aumentar ou
espaçar a distância entre as sessões ou decidir pelo fim do processo
terapêutico.
Outro aspecto de suma importância e que diz respeito ao contrato
terapêutico é o valor que o consulente vai pagar por cada sessão. Se o objeto da
sessão terapêutica é a manifestação de uma inibição reprimida (via ajustamento
neurótico ou formação reativa), ou o retorno da função de ego ao comando do
processo de contato; e se esses acontecimentos têm antes relação com a
configuração de um campo no qual o consulente é o principal protagonista; o
pagamento não deve ser relacionado, exclusivamente e em primeiro lugar, com os
honorários do profissional, mas com a importância que o consulente dá a seu
próprio sintoma, ou ao seu próprio ajustamento criador. Por outras palavras, o
pagamento não deve valorar o clínico, mas o quanto de importância o consulente
dá a isso que ele ignorava de si, mas que na sessão veio à tona, precisamente:
que ele é acometido de uma fisiologia secundária que interfere em sua regulação
organísmica e social, mas, ainda assim, é capaz de ultrapassá-la. Por
conseguinte, é muito importante que: no fechamento do contrato, o clínico
vincule o objeto da experiência clínica - precisamente, as formas de evitação que
o consulente imputa a si ou a revelação de uma capacidade criativa que o
próprio consulente ignorava em si - e o valor que essas formas possam assumir na vida oficial desse mesmo
consulente.
Tal vinculação vem ao encontro de algo que, tão logo o
"objeto” do tratamento tenha sido pontuado e contratado, o consulente
passa a admitir de si mesmo, a saber: que é ele próprio quem estabelece tal
"objeto”, que é ele mesmo quem interrompe seus próprios excitamentos, ou
que os elabora criativamente. Tal significa dizer que, o consulente "sabe”
que o que vai ser tratado na experiência clínica tem relação consigo - e não
com o clínico. É isso, ademais, o que torna o tratamento algo interessante para
o consulente. É isso que gera vínculo. Se ignorasse esse "saber”, o
clínico estaria correndo o risco de ambicionar maior importância que aquela que
o consulente dá a si próprio.
Isso posto, abre-se para nós a possibilidade de comentar algo
sobre o famoso "vínculo” terapêutico. Em rigor, este não é mais que o
encantamento do consulente por suas próprias gestalten, por seus próprios modos
de interrupção do processo de contato e, mais ainda, por suas próprias
repetições disponíveis e inibidas, que são os excitamentos que constituem a
função id.
Engana-se
aquele que pensa que o retorno do consulente à sessão tem relação com um suposto saber
atribuído ao clínico. O consulente "sabe” que o clinicamente interessante,
pelo qual ele vai pagar, vem dele mesmo, embora frequentemente formule o
contrário, numa tentativa de manipulação neurótica. Nesse sentido, o consulente
não faz vínculo com o clínico. Ele faz vínculo consigo, com isso que é outro
para si. Acontece que esse outro só pode surgir numa relação de campo, onde as
defesas do consulente contra isso que ele mesmo deseja sejam desafiadas. É aí
que entra o clínico.
Evidentemente, para que o consulente possa se apropriar dos
próprios ajustamentos neuróticos, ou de sua capacidade de recriação, ele
necessita contar com a disponibilidade do clínico, necessita contar com a capacidade do clínico
para se deixar arrebatar,
descentrar. O clínico, em algum sentido, precisa abrir mão de suas próprias
teorias, curiosidades, vaidades, enfim, personalidades, em proveito das
formulações criativas e autônomas desempenhadas pelo consulente. E é por esse
desprendimento que o clínico "cobra”.
Do ponto de vista do clínico, o valor da sessão em verdade paga o
quanto o profissional "deixa” o consulente trabalhar. Gestalt-terapeutas
que têm dificuldade para valorar e cobrar seu próprio trabalho (seja para mais
ou para menos) não apenas depreciam ou supervalorizam seu ofício. Eles também
conspiram contra a orientação ética do tratamento. Afinal, se o pagamento
remunera o "quanto de autonomia” os clínicos asseguram aos seus
consulentes, a falta de cobrança ou a cobrança a menor (ou, em alguns casos, a
maior) demarcam a resistência desses clínicos em favorecer a "alforria” de
seus acompanhados. Ou, ainda, a falta de cobrança ou a cobrança frequentemente
a menor demarcam o apego dos clínicos ao lugar de poder a que foram conduzidos
pelo "apelo” dos consulentes. Nesse sentido, é preciso ressaltar que os
clínicos não são representantes oficiais dos consulentes, não são prestadores
de serviço, não foram investidos no lugar de gestalt-terapeutas pela força dos
contratos civis, dos preceitos morais ou dos códigos de defesa do consumidor.
Por conseguinte, não podem cobrar por isso, não podem cobrar em nome dos
contratos estabelecidos no campo da função personalidade.
É fato que os gestalt-terapeutas dão recibos, declaram seus
rendimentos ao fisco, prestam informações não-sigilosas para sua categoria
profissional ou para as autoridades civis de sua comunidade. Entretanto, essas
delegações não são ofícios do clínico, mas de um profissional, de uma
personalidade à qual o clínico se identifica, e com a qual precisa se identificar para poder
atuar numa determinada comunidade objetiva. Mas não é algo com que o clínico
deva operar quando efetivamente se ocupa do consulente. Dar recibos, preencher
formulários, prontuários e etc. não é prática clínica. É exercício de uma
personalidade, de uma função personalidade, a qual não é objeto da visada ética
da clínica gestáltica dos ajustamentos neuróticos. A ética dessa clínica diz respeito
ao que se mostra como "estranho”, como "outro”, diz respeito àquilo que está fora do alcance do clínico.
Consequentemente, o clínico não tem nada a fazer por esse estranho, tampouco a
cobrar. Ele só pode cobrar por sua diligência em não atender aos apelos desse
estranho, depois de tê-los ouvido e não obstante continuar a ouvi-los.
Da mesma forma, o consulente
não é um "cliente”, que paga por um serviço. Menos ainda um
"paciente”, assujeitado a um saber médico, psicológico, jurídico,
filosófico... O consulente é quem consulta, consulta a si mesmo em um campo
onde o interlocutor, assim denominado "clínico”, permite àquele
aperceber-se, tomar posse de seu próprio fluxo de awareness, ou do modo como
o interrompe. Até que ele saia
da condição de
consulente e seja para si mesmo um clínico, um desviante ou, para introduzirmos
um neologismo: um ‘clinicante’.
Para Perls, Hefferline e Goodman, "(a) diagnose e a terapia
são o mesmo processo” (1951, p. 250). Afinal, se é a partir do lugar que somos
(ou não) convidados a ocupar no "apelo” do consulente que identificamos
ajustamentos aflitivos, psicóticos ou neuróticos, porquanto ocupar (ou não)
aquele lugar é um ato "clínico” (um descentrar-se ante o que faz derivar),
toda identificação diagnóstica implica intervenção terapêutica. Mas no que
exatamente intervimos? Quais lugares, precisamente, passamos (ou não) a ocupar?
Do fato de
distinguirmos entre três gêneros fundamentais de ajustamento disfuncional não
se segue que acreditemos que eles sejam estruturas totalmente incomunicáveis. É
verdade que cada ajustamento descreve o comprometimento de uma determinada
função do
self. Mas, assim como as funções são sempre funções num só campo,
denominado sistema self, os comprometimentos estão a sua vez articulados entre si, de modo
a constituírem um sistema único. O que significa dizer ser possível
observarmos, num mesmo consulente, em momentos diferentes de uma mesma sessão,
os três tipos de ajustamentos disfuncionais de que se ocupa a Gestalt-terapia.
Um consulente pode, numa mesma sessão: chegar aflito (carente de um dado);
fazer uma formação reativa tão logo esse dado lhe seja oferecido (haja vista o
fato de esse dado ameaçar uma inibição reprimida); e, depois da intervenção do
clínico, responder de modo delirante aos excitamentos desarticulados que ele
mesmo carrega em seu fundo e que porventura tivessem sido despertados por aquela
intervenção. Ainda assim, os três ajustamentos serão diferentes entre si e, por
conseguinte, requererão intervenções diferentes. Por outras palavras, eles são
comprometimentos de funções diferentes, o que implica lugares diferentes a
serem ocupados pelo clínico para efeito de intervenção e diagnose (entendidos
como um só ato).
Conforme
já anunciado, no presente capítulo, nós estamos dissertando sobre os
ajustamentos neuróticos, exclusivamente. Estamos investigando os diferentes
modos pelos quais, nas diversas etapas do processo de contato, a inibição
reprimida interrompe o avanço do excitamento, estabelecendo laços sociais, cujo
propósito é dispersar a ansiedade decorrente daquela interrupção. Do ponto de
vista clínico, cada um desses laços constitui uma forma de apelo ao clínico:
"seja meu modelo” (confluência), "seja meu mestre” (introjeção),
"seja meu réu” (projeção), "seja meu cuidador” (retroflexão),
"seja meu fã” (egotismo)... E nunca é demais lembrar que, assim como os três
gêneros de ajustamento acima mencionados (aflição, psicose e neurose)
constituem um só sistema, os vários tipos de "apelos” - que correspondem
às diferentes formas de interrupção que caracterizam o ajustamento neurótico -
constituem também eles um comportamento único. Segundo Perls; Hefferline e
Goodman, a "tipologia” em que se apresentam os vários momentos de ação da
inibição reprimida (com o propósito de interromper o avanço do excitamento
inibido nas várias etapas do processo de contato) "não é uma tipologia de
pessoas neuróticas” (1951, p. 259). Ou, ainda, “o esquema”: por cujo meio se
descrevem as interrupções na progressão do excitamento inibido seja no
pós-contato (confluência), no pré-contato (introjeção), no contatando (projeção
e retroflexão) ou no contato final (egotismo): tal esquema “não é uma
classificação de pessoas neuróticas, mas um método único de decifrar a estrutura de um comportamento neurótico
único” (PERLS; HEFFERLINE e GODDMAN, 1951, p. 259).
De um ponto de vista clínico, essa “decifração” da estrutura de um
comportamento único não se presta a determinar características, ou a explicar
os motivos (conteúdos) implicados em cada etapa de um ajustamento neurótico. Ao
contrário, trata-se apenas de uma descrição do modo de funcionamento da
inibição reprimida na fronteira de contato. Ou, então, trata-se da descrição
dos tipos de “laço social” produzidos pela inibição reprimida nas sessões
terapêuticas; e por cujo meio ela própria demandaria ao clínico uma colaboração
no trabalho de aniquilação da ansiedade decorrente da pressão exercida por um
excitamento que, a sua vez, deveria permanecer inibido, mas que acabou sendo
mobilizado por algum dado na fronteira de contato.
O propósito dessa
descrição é orientar o clínico sobre “como” ele está sendo requisitado e sobre o que ele poderia “esperar”
caso se deixasse arrebatar por tal requisição. Afinal, se o ajustamento neurótico é um comportamento
único, os vários tipos de laço social produzidos pela inibição reprimida na
sessão estão articulados entre si. Essa orientação, obviamente, não tem em
vista capacitar o clínico para que, dessa forma, ele possa corresponder aos apelos estabelecidos pela inibição
reprimida no interior de cada ajustamento. Trata-se, ao contrário, de oferecer
ao clínico um panorama amplo sobre os possíveis modos de conexão dos ajustamentos entre
si, o qual favoreça o trabalho de “frustração habilidosa” de cada qual.
A intervenção clínica
nos ajustamentos neuróticos visa estabelecer uma relação de campo, uma situação
de contato em que possam figurar: por um lado, a inibição reprimida (que está a
atuar nos ajustamentos neuróticos) e, por outro, a angústia característica da
presença de algo que se repete como função id. No presente tópico, vamos discutir a ação
do clínico no que tange ao surgimento da inibição reprimida. Tal ação, conforme
já mencionamos, é a pontuação da forma como o consulente habitualmente
interrompe seu próprio fluxo de excitamentos. Para fazer essa pontuação, também
o vimos, o clínico precisa se deixar descentrar nos apelos que tais
interrupções lhe dirigem. O que não quer dizer que deva ser condescendente a
eles. Ao contrário, para Perls, muito especialmente, a intervenção gestáltica
nos ajustamentos neuróticos é, fundamentalmente, uma tentativa de frustração
habilidosa dos apelos veiculados por aqueles ajustamentos. Habilidosa em dois
sentidos: i) primeiramente porque estabelecida em um contexto no qual o
consulente está protegido e ii) também porque eticamente comprometida com a promoção da autonomia
da função de ego no consulente - e não com a vaidade do clínico.
Para Perls (1973, p.
104), existem tantas formas de frustração habilidosa dos ajustamentos
neuróticos quantos a criatividade do clínico permitir existirem. De modo geral,
pode-se dizer que as frustrações habilidosas são intervenções clínicas, por
cujo meio o clínico "não” atende ao apelo - que o consulente lhe dirige -
para atuar como modelo, como mestre, réu, cuidador, fã... Um simples olhar, um
bocejo, uma interrupção da frase, o permanecer em silêncio, às vezes, são mais
que suficientes para estabelecer tal frustração. Via de regra, se o clínico
está descentrado no fluxo do consulente, essas atitudes estão integradas ao
ajustamento que o consulente desempenha.
Se este demanda, com seu falatório, "seja meu fã”, o clínico
pode inventar múltiplas maneiras de mostrar desinteresse ou desconfiança
relativamente a esse ajustamento egotista, por exemplo, solicitando:
"conte-me uma situação concreta em que você viveu isso sobre o que você
está especulando”.
No caso de o ajustamento ser uma retroflexão, um pedido de
cuidado, o clínico pode perguntar: "o fato de você me dizer que é um
fracassado modifica, em alguma medida, a possibilidade de você realmente ser um
fracassado?”.
Se logo a seguir o consulente fizer um ajustamento projetivo,
acusando alguém ou o próprio clínico de alguma coisa, este pode propor ao
consulente que troque de lugar com o acusado (num experimento de "cadeira
vazia”, por exemplo), e possa dizer o que acontece consigo nesse novo lugar.
É frequente, depois de intervenções que debelam um ajustamento
projetivo, o consulente se aperceber de sua implicação na projeção e,
imediatamente, se afixar a um propósito de mudança. Nesse sentido, ele pode
solicitar ao clínico que lhe diga se o que ele está pensando fazer está certo.
A esse pedido introjetivo ("seja meu mestre”, meu "orientador”), o
clínico pode "desorientar” dizendo: "o que lhe faz acreditar que você
realmente quer mudar?”.
Isso pode levar o consulente a se deparar com suas próprias
necessidades e, não as encontrando - como se presume num ajustamento confluente
- de chofre devolver a pergunta ao clínico: "o que eu devo querer? Você o
sabe?”. Para sair dessa condição de modelo - a quem o consulente "imita”
reproduzindo o comportamento interrogativo - o clínico pode pontuar a posição
corporal, o tônus muscular, o tom de voz com o qual o consulente faz a pergunta.
Talvez, então, para fugir do vazio que possa encontrar, o
consulente inverta a sequência de ajustamentos, ou comece pelo egotismo, mais
uma vez. E essa dialética pode se prolongar nas sessões por meses, até que o
clínico se torne mais íntimo dos ajustamentos e, por conseguinte, uma ameaça
mais intensa à inibição reprimida. As possibilidades de acontecer uma formação
reativa aumentam e, com ela, o risco de o consulente abandonar o tratamento ou,
finalmente, entrar em contato com seus próprios excitamentos.
É importante não confundir as intervenções do clínico com "interpretações”
sobre quais haveriam de ser os excitamentos que o consulente estaria a
interromper. Diferentemente da postura interpretativa, a postura de
confrontação não é uma tentativa de "costurar”, dar sentido, buscar o
excitamento inibido ou a inibição reprimida. Isso não só pouparia o consulente
de fazer operar uma função de ego, como poderia expulsá-lo da terapia. O
consulente poderia se sentir invadido, ou cobrado por palavras que, em verdade,
foi o clínico quem as introduziu na sessão. Ou, então, o consulente poderia se
sentir desbancado em seu lugar de consulente pelo próprio clínico, o qual, em
seu afã de "dar sentido”, acabaria vítima de suas próprias teses, tendo de
defendê-las diante do consulente. Fatalmente, o consulente acabaria perdendo o
interesse pela terapia, porquanto as discussões das sessões não versariam mais
sobre palavras ou ações que fossem suas. Versariam, sim, sobre os interesses
desse “consulente-gato”, no qual o clínico se transformou.
Ou, num sentido inverso, as interpretações poderiam trabalhar em
favor do êxito dos ajustamentos neuróticos, o que significa: ajudá-los a
pulverizar a ansiedade advinda do excitamento inibido. O consulente sairia das
sessões sentindo-se “confirmado”, “cuidado”, “vingado”, “justificado” e,
sobretudo, “iludido” sobre seu próprio processo. Clínico e consulente poderiam
doravante estabelecer um pacto em torno do suposto êxito do tratamento, quando
em verdade, o que se passa é algo bem diferente. Mesmo porque o suposto êxito
do tratamento não vai além da porta do consultório; em seu cotidiano, o
consulente continua acometido das mesmas dificuldades de antes. Razão pela
qual, o consulente - por perceber a insignificância do processo terapêutico no
contexto geral de sua vida - abandona o clínico.
Aliás, para o clínico, a ansiedade do consulente não é algo a ser
aplacado, seja pela interpretação, pela sugestão, enfim, por qualquer tentativa
de se “fazer pelo consulente”. A presença da ansiedade indica que um
excitamento inibido está sendo requisitado na fronteira e que a inibição não
está conseguindo dar conta dele. É uma ocasião para a função de ego no
consulente recuperar o posto (que a inibição reprimida lhe roubara) e criar,
para o excitamento até então inibido, novos núcleos significativos, o que
significa integrar a ansiedade a esses novos núcleos. A interpretação - se
estabelecida pelo clínico - acabaria fazendo pelo consulente aquilo que, neste,
seria tarefa da função de ego. Diferentemente da interpretação e de outras
formas de “cuidado”, a frustração equilibrada visa escancarar a ansiedade e,
assim, disponibilizá-la para a ação criativa da função de ego no consulente.
Essas objeções à
interpretação não significam que Perls; Hefferline e Goodman
desaconselhassem-na de todo. Os fundadores da Gestalt-terapia reconhecem uma
relativa funcionalidade para a interpretação quando - e somente quando - esta é
desempenhada pelo consulente. Por um lado, a interpretação é uma maneira de o
consulente “operar” com isso que a frustração habilidosa revelou, precisamente,
a presença da ansiedade. Ou, por outro lado, ela é uma das formas com as quais
o consulente pode “enfrentar” a própria inibição reprimida, depois que ela se
manifestou em um experimento proposto pelo clínico. Um desses experimentos pode
ser, por exemplo, a própria associação livre - desde que esta “não” seja
entendida como
a
metabase de onde o analista retiraria o material para as interpretações. É
preciso aqui apresentar as reservas de Perls; Hefferline e Goodman sobre a
função da associação livre nas sessões terapêuticas.
A
genialidade da psicanálise foi mostrar que essas associações livres não se
sucediam de fato meramente por essa lei de associação por partes; mais
exatamente, elas tinham uma tendência a se organizar em todos ou conjuntos
significativos, e a prosseguir numa determinada direção, e que esses conjuntos
significativos tinham uma relação importante e significativa com o estímulo
original, o detalhe do sonho, e com o problema subjacente do paciente. O paciente
não estava de fato produzindo “mecanicamente” o fluxo, mas estava, embora não
tivesse consciência disso, expressando determinadas tendências, retornando a
certas necessidades emocionais e tentando preencher uma figura inacabada. Isto
foi, naturalmente, uma prova fundamental da existência do inconsciente; o
problema é se isto é útil para a psicoterapia (PERLS; HEFFERLINE e GODDMAN,
1951, p. 135).
Evidentemente, Perls;
Hefferline e Goodman não utilizam a associação livre visando os mesmos fins
almejados pela psicanálise. Não se trata de esperar, por meio da associação
livre, que o consulente se aperceba de um desejo inconsciente. A associação
livre não é para eles uma metodologia de acesso ao inconsciente. Trata- se de
uma provocação que o clínico dirige ao consulente ou, trata-se de um
experimento de linguagem cujo propósito é quebrar o controle rígido (egotista)
com o qual o consulente costumeiramente dissimula sua ansiedade.
Existe uma virtude mais essencial
na livre associação, mais próxima do uso que a psicanálise classicamente fez
dela. A razão pela qual se pede ao paciente que faça associações livres em
lugar de contar sua história e responder a perguntas é naturalmente porque sua
conversa costumeira é neuroticamente rígida, é uma integração falsa de sua
experiência. A figura da qual tem consciência é confusa, obscura e
desinteressante porque o fundo contém outras figuras reprimidas das quais ele não tem consciência, mas que distraem
sua atenção, absorvem energia e impedem um desenvolvimento criativo. A livre
associação rompe essa relação rígida entre figura e fundo, e permite que outras
coisas venham para o primeiro plano (PERLS; HEFFERLINE e GODDMAN, 1951, p.
137).
Mas isso não significa,
necessariamente, que o consulente consiga se apropriar dessas “outras coisas”,
desses invisíveis, da própria presença da inibição reprimida ou do excitamento
inibido. De um modo geral, quem se apercebe disso é o clínico - e, com muita frequência,
apenas o clínico.
Note que o terapeuta está se
concentrando no fluxo e criando figuras totais nele (achando-as e
produzindo-as): presta atenção aos conjuntos, cronometra as associações que se
prolongam e que indicam resistência, percebe o tom e a expressão facial. Desse
modo torna-se consciente de algo sobre o paciente, a saber, o comportamento do
paciente na inconsciência. Contudo, o objetivo da psicoterapia não é de o
terapeuta ter consciência de algo a respeito do paciente, mas de o paciente ter
consciência de si próprio (PERLS; HEFFERLINE e GODDMAN, 1951, p. 135-136).
E mesmo que o clínico
se ocupe de explicar “ao paciente o que ele (o T) agora sabe sobre ele (o P)”
(PERLS; HEFFERLINE e GODDMAN, 1951, p. 136), tal não faz mais que corroborar o
pedido neurótico dirigido ao clínico: explique-me, mostre-me como eu sou
interessante, e assim por diante.
Dessa maneira, o paciente adquire,
sem dúvida alguma, muitos conhecimentos interessantes a respeito de si próprio,
mas é de se perguntar se ele intensifica por meio desses a awareness de si mesmo. Porque o conhecimento-sobre
tem um certo caráter abstrato, não é pleno de interesse; além de, mais uma vez,
estar ocorrendo no seu contexto costumeiro de introjeção da sabedoria de uma
autoridade. Se pudesse vir a reconhecer o objeto do conhecimento como sendo ele
mesmo, então esse tipo de conhecimento - do qual estávamos a par e não sabíamos
que estávamos a par - seria íntimo e tremendamente pleno de interesse. O
objetivo da terapia é fazer com que ele reconheça isso, mas este é exatamente o
ponto de onde partimos em primeiro lugar (PERLS; HEFFERLINE e GODDMAN, 1951,
p.136).
Contra esse estado de
coisas, Perls; Hefferline e Goodman exortam os clínicos a estabelecerem um uso
da livre associação em que o próprio consulente se sinta responsável por seu
discurso e capaz de estabelecer - agora sim - a interpretação daquilo que neste
se produziu. Por outras palavras, o uso que um clínico pode fazer da livre
associação é aquele em que se solicita ao consulente que este seja
"parceiro no processo de interpretar” (PERLS; HEFFERLINE e GODdMaN, 1951, p.
137). Para tanto, é importante que o clínico comece, por um lado, estabelecendo
algumas interpretações, que funcionem de maneira didática, encorajando o
consulente a fazê-las por si. Por outro, é fundamental que o clínico frustre
essas interpretações, denunciando as tentativas de controle da ansiedade que
nelas se produziu. Dessa forma, o consulente tem acesso, mais do que à
ansiedade, ao modo como ele mesmo tenta aniquilá-la. Ele tem acesso a um
estilo, a seu próprio modo de interpretar, o que significa: ele tem acesso a
seu próprio modo de construir e desconstruir a presença da ansiedade, a
presença do excitamento ansiogênico. A interpretação deixa de ser a expressão
do interesse epistêmico do clínico, para se tornar uma instância ética, uma
forma de comprometimento do consulente com seu próprio processo terapêutico, com a maneira como ele mesmo lida com suas situações
inacabadas.
Desse
ponto de vista, ele [o consulente] tem naturalmente que se tornar um parceiro
no processo de interpretar. A noção aqui é de que a máxima ‘Conhece-te a ti
próprio’ é uma ética humana: não é algo que nos fazem quando estamos em
dificuldades, mas algo que fazemos em prol de nós como seres humanos (1951, p.
137 - nosso grifo).
Ainda assim,
essa aquisição do consulente relativamente ao seu estilo, ao seu modo de operar
ou evitar a ansiedade, pode ser cooptada pela inibição reprimida.
O
perigo da técnica seria que, pondo de lado o self que é responsável, que sente interesse e toma decisões, o paciente
vinculasse seu novo conhecimento estritamente à sua verbalização, matizada
agradavelmente por uma atmosfera afetuosa e uma platéia paternal amiga. Então,
em lugar de curar a divisão, a técnica a embaralharia mais ainda (PERLS;
HEFFERLINE e GODDMAN, 1951, p.136).
Com o passar das sessões é frequente que as interpretações que o
consulente produz relativamente a seu próprio processo comecem a favorecer
ajustamentos egotistas. As interpretações começam a ser usadas em favor da
evitação do contato final ou da assimilação dos excitamentos ansiogênicos que
estejam sendo requisitados no aqui/agora da sessão. Momento em que, mais uma
vez, o clínico deve propor novas frustrações habilidosas das estratégias de
defesa implementadas pela inibição reprimida, até que enfim, na sessão, ocorra
uma formação reativa.
De fato, o êxito da frustração habilidosa é alcançado quando, no
consulente, a inibição reprimida não consegue mais disfarçar a ansiedade,
sentindo-se obrigada a atuar contra o dado que esteja a mobilizar o excitamento
ansiogênico, seja esse dado ou não o próprio clínico. Por outras palavras, o
êxito da frustração habilidosa se deixa saber no momento em que o clínico pode
testemunhar, da parte da fisiologia secundária no consulente, uma formação
reativa. A inibição já não se sustenta diante das provocações do clínico. E,
antes de permitir a plena manifestação da situação inacabada, ela ataca aquilo
que, na fronteira de contato, intensifica o chamado por aquela situação.
Nesse momento, o
clínico não vai mais perceber, no consulente, aqueles apelos que antes
caracterizavam os ajustamentos neuróticos. Ele não vai mais ser requisitado a
trabalhar pelo consulente, seja como modelo, mestre, vítima, cuidador ou fã. A
configuração de campo agora é diferente e tudo o que o consulente quer é se ver
livre da sessão, do clínico ou das intervenções que o clínico lhe dirige. Por
conta disso, se o que estiver em questão - para o clínico - for o ataque à
inibição em proveito da assimilação de um excitamento inibido, o consulente
poderá se tornar mais agressivo, extremamente irônico ou insubordinado às
propostas do clínico. Se o que estiver em questão for a utilização do
excitamento inibido em favor da abertura de um novo campo, o consulente poderá
intensificar sua dessensibilização, sua desorientação, não mais entender o que
se passa na sessão, fazer uma passagem ao ato. No decurso da sessão, ele pode
derrubar um objeto, desfalecer, tropeçar. Ou, logo após a sessão, ou mesmo
antes de chegar até ela, o consulente pode perder a condução, bater o carro,
torcer o tornozelo e assim por diante. Eis a ocasião, o segundo momento da
intervenção, o momento da proposição do segundo recurso fundamental da
intervenção gestáltica, que é o experimento de concentração nas polaridades,
nas polaridades inerentes àquilo que o consulente esteja percebendo, sentindo,
fazendo, dizendo...
O desencadeamento de uma formação reativa no consulente é a prova
de que o processo terapêutico cresce na direção do que se esperava,
precisamente: a manifestação explícita da inibição reprimida, por um lado, e a
liberação da função de ego, por outro. Mas, a manifestação da primeira não
implica necessariamente a liberação da segunda. Mesmo o consulente se
apercebendo de suas próprias formações reativas, tal percepção não assegura à
função de ego o controle sobre a situação, a condução do excitamento antes
inibido até o contato final. Para tal, a função de ego precisa ser
"treinada”; ela precisa ser iniciada nesse desafio.
O consulente não sente mais aquela ansiedade de antes, porquanto o
excitamento inibido está disponível. Em contrapartida, o consulente agora está
tomado pela "angústia”, que é o efeito daquele excitamento na função de
ego. Aliás, para uma função de ego ativa na fronteira de contato, a co-presença
de um excitamento antes inibido (e que restava no fundo como situação
inacabada) sempre implica angústia. Esta não é mais que a tensão característica
do momento de criação, do momento em que a função de ego está prestes a
estabelecer o contato final entre um excitamento ainda investido de tensão
material (e que, portanto, não havia sido assimilado) e um dado na fronteira de
contato. A tarefa do clínico, nesse momento, é pontuar, não mais a ansiedade,
mas a presença desse novo "estranho”, que aparece nas "entrelinhas”
da formação reativa ou depois que ela se dissipou - e antes que a inibição
reprimida conseguisse se reorganizar. Trata-se desses "acontecimentos”,
sempre inesperados, tal como o chiste, o ato falho, as frases impensadas, as rememorações
involuntárias, os olhares incertos pelos quais o consulente "vaza” em
direção ao nada, os gestos habituais por cujo meio atua como se estivesse
noutra geografia, noutra cena que não aquela da sessão. Apoiado nesses
acontecimentos, devidamente pontuados, o clínico propõe "experimentos
clínicos”, por cujo meio o consulente possa assumir consequências, frequentar
possibilidades, exagerar posturas, dentre outras infinitas variáveis expressas
junto àqueles acontecimentos. A intenção é que o consulente possa
"derivar” pelas possibilidades que, de maneira operativa, ele mesmo
anunciou, executou ou omitiu. O clínico desafia a função de ego no consulente a
"escolher”, a "deliberar”, enfim, a "criar” campos de presença,
até que este se aperceba de que não precisa mais da terapia para fazer isso.
Depois das
formações reativas, os consulentes costumam esboçar um "pathós”, um
espanto em decorrência do que acabaram de sentir, dizer ou fazer. Nesse
momento, os excitamentos inibidos ficam à deriva, sem o controle da inibição
reprimida, e ainda sem receberem a ação da função de ego. É um momento crítico,
pois as "sonolências” do clínico - que se manifestam, sobretudo, quando
este insiste em continuar a sessão mesmo não havendo mais nada a se fazer, ou
quando permite ao consulente mudar de assunto para assim dissipar o mal-estar
que porventura tenha se instalado na sessão - podem facilitar a reabilitação da
inibição reprimida e a retomada dos ajustamentos neuróticos. Pontuar esse
momento - o que sempre demanda do clínico uma extrema concentração no fluxo ou, o que é a mesma
coisa, o pleno descentramento do clínico na sessão - é de fundamental
importância para a mobilização da função de ego no consulente. Tal pontuação
pode se dar das mais variadas formas, dependendo do estilo do clínico: este
pode estabelecer o "corte” da sessão, mandando o consulente para casa
antes do teto previsto para o término da consulta; ou, então, ele pode
interromper o que o consulente estiver fazendo e lhe pedir para "repetir”,
"prestar atenção”, enfim, se "apropriar” daquilo que esteja
acontecendo consigo naquele instante, naquele consultório... Essa pontuação
inaugura o estágio da "angústia”, porquanto o "pontuado”
é a maneira como o próprio fundo, antes inibido, emergiu na fronteira de
contato depois que a inibição reprimida saiu de cena.
O clínico nunca sabe, e jamais saberá o que é isso que está a
gerar angústia no consulente. Nem mesmo este o sabe; só a sente. Trata-se de
algo novo, com o qual o consulente não sabe lidar. Por um lado, ele poderia
reabilitar a inibição reprimida - o que pode equivocadamente ser facilitado
pelo clínico. Mas, por outro, ele pode se arriscar, pode se deixar conduzir por
esse "estranho” que vem dele mesmo. "Experimento” é o nome dessa
segunda alternativa, é a opção pelo risco, pela criação do inédito. Trata-se,
em verdade, da recondução da função de ego ao governo do processo de contato. É
muito importante aos terapeutas terem isso em conta, para não caírem no equívoco
de acharem que "experimento” tem a ver com aquelas técnicas dramatúrgicas, aeróbicas,
linguísticas, dentre outras tão frequentemente utilizadas no consultório, e que
não raro acabam se tornando motivo de entretenimento ao próprio clínico. Tais
técnicas podem sim ser utilizadas para mobilizar a função de ego no consulente
no momento em que este esteja tomado pela angústia. Mas não é a técnica ela
mesma o experimento, e, sim, a mobilização da função de ego no consulente. Esta não
necessariamente precisa acontecer nas dependências do consultório, no decurso
da sessão. Ela pode se dar, por exemplo, no caminho de volta do consulente para
casa, dois dias depois da sessão, nos sonhos que o consulente venha a sonhar. O
experimento não precisa sequer do testemunho do clínico. Por vezes,
"abandonar” o consulente em sua angústia é o melhor que podemos fazer em
proveito da mobilização da função de ego; o que, obviamente, não é certeza de
que ele irá se dar "bem” ou "mal”, pois, o bem-estar ou o mal-estar
do consulente não é objeto da intervenção clínica nos ajustamentos neuróticos.
Outras vezes,
acompanhar o consulente na elaboração de um experimento - na recondução do ego
ao controle da situação - é algo muito importante para o êxito da experiência
clínica. Afinal, não é incomum que - depois de um grave comprometimento da
função de ego - os consulentes não consigam articular, por conta própria, uma
situação de contato. O clínico pode colaborar solicitando aos consulentes que
utilizem outros recursos, que não os mais acessíveis, para lidar com a angústia que estejam
sentindo. No caso de um sonho, do qual tenham involuntariamente se lembrado, mas que não conseguem
compreender, o clínico pode lhes pedir que tentem fazê-lo por outros meios, por
exemplo, dramatizando os próprios sonhos na sessão. Evidentemente, não se trata
de pedir aos consulentes que descubram, por meio dessa técnica, algo que se articula
no subterrâneo das suas ações. Já não estamos mais trabalhando com algo
reprimido, que pudesse ser interpretado. Trata-se, ao contrário, de oportunizar
a eles a ocasião de se apropriarem de algo que possam fazer sem planejar, dizer
sem pensar, criar sem precisar antes arquitetar. Mesmo se o clínico se limitar
a pedir que os consulentes relatem uma segunda vez o sonho lembrado, mas agora reproduzindo cada
personagem na primeira pessoa do singular, o importante é que, por meio dessa
técnica, eles possam assumir aquilo que o relato de cada qual instituiu. Não se
trata mais de uma interpretação, mas de um exercício de emancipação de um dizer e de um agir. O que se
fez e o que se disse, ambos devem poder ser assumidos tal como se manifestaram,
segundo o modo como se apresentaram. O que levou os fundadores da Gestalt-terapia a
falarem do experimento como uma sorte de "surrealismo”. Há nos sonhos,
como em todos os experimentos, a criação de uma nova gestalt, de uma nova
configuração, algo que está mais além da realidade (função personalidade), um
real além da realidade, a polaridadeii da inibição reprimida. Nesse sentido,
dizem os autores:
Suponhamos que o paciente aceite o
sonho como seu próprio sonho, lembre-se dele e possa dizer que o sonhou em
lugar de dizer que um sonho veio a ele. Se ele puder agora ligar novas palavras e pensamentos a esse
ato, haverá um grande enriquecimento da linguagem. O sonho fala na linguagem de
imagens da infância; a vantagem não é rememorar o conteúdo infantil, mas
reaprender algo do sentimento e da atitude da fala infantil, recapturar o tom
de visão eidética, e vincular o verbal e o pré- verbal. Contudo, desse ponto de
vista, o melhor exercício seria talvez não a livre associação a partir da
imagem e o emprego de frio conhecimento à imagem, mas exatamente o contrário:
uma representação literária e pictórica cuidadosa desta (surrealismoj (PERLS;
HEFFERLINE e GODDMAN, 1951, p.136-137).
Ora, o processo de reabilitação da função de ego, que define o
experimento, não está amparado em regras, experiências paradigmáticas ou
modelos que pudessem ajudar o consulente nesse desafio. Podemos, sem dúvida,
descrever o estilo adotado por Perls e seus colaboradores. Ou, então, podemos
descrever os diferentes momentos de um experimento, tal como na passagem a
seguir, em que os autores procuram retratar a ambivalência característica desse
momento clínico, que é o momento do experimento. Nele, o excitamento inibido já
se manifesta por si disponível para a função de ego. Mas esta ainda não tem
autonomia suficiente para lidar com àquele; razão pela qual ela é
frequentemente atravessada pelo retorno da inibição reprimida. Um estado
ansiogênico então se reconfigura, embora isso já não seja condição suficiente
para a função de ego sair de cena. É inevitável que ela assuma o controle;
exigindo-se do clínico que possa reconhecer esse conflito, favorecendo a
criatividade no consulente.
1.
O paciente como parceiro ativo no experimento, concentra-se no que
está realmente sentindo, pensando, fazendo, dizendo; ele tenta entrar em
contato com isso mais intimamente em termos de imagem, sentimento do corpo,
resposta motora, descrição verbal, etc.
2.
Como é algo que o interessa intensamente, não precisa de modo
deliberado prestar atenção a isto, mas isto lhe atrai a atenção. O contexto
pode ser escolhido pelo terapeuta a partir do que ele conhece do paciente e de
acordo com sua concepção científica de onde está a resistência.
3.
É algo de que o paciente está vagamente consciente e de que se
torna mais consciente devido ao exercício.
4.
Ao fazer o exercício, o paciente é encorajado a seguir sua
inclinação, a imaginar e exagerar livremente, pois trata-se de um jogo seguro.
Ele emprega a atitude e a atitude exagerada na sua situação concreta: sua
atitude em relação a si próprio, em relação ao terapeuta, seu comportamento
costumeiro (na família, no sexo, no trabalho).
5.
Alternadamente, ele inibe de modo exagerado a atitude e emprega a
inibição nos mesmos contextos.
6.
À medida que o contato torna-se mais íntimo e o conteúdo mais
completo, ele fica ansioso. Isto constitui um estado de emergência sentida, mas
a emergência é segura e controlável, e os dois parceiros sabem que ela o é.
7.
O objetivo é que, na emergência segura, a intenção subjacente [a
situação inacabada] - uma ação, atitude, objeto atual, memória - se torne
dominante e reforce a figura.
8.
O paciente aceita a nova figura como sendo sua própria, sentindo
que “sou eu que estou sentindo, pensando e fazendo isso” (PERLS; HEFFERLINE e GODDMAN, 1951, p. 95-96).
Mesmo a inibição reprimida tendo sido debelada, no experimento,
ela pode voltar gerando um estado novamente ansiogênico, embora já sem a força
de antes. O desafio para o clínico é oferecer novos fundos de experiência para que o
consulente (na função de ego) possa se apropriar disso que para este já é
evidente, precisamente, a emergência do excitamento antes inibido. Mas essa
descrição não prescreve o que o clínico ou o consulente "devem fazer”.
Enquanto reabilitação da função de ego, o experimento é algo sempre inédito,
uma criação inédita estabelecida pelo consulente.
Tal não implica que o experimento seja uma criação individual,
solipsista. O consulente sempre pode contar com os excitamentos já assimilados, os quais
restaram para ele como hábitos. Ou, ainda, ele também pode contar com as
possibilidades de futuro abertas pelos dados na fronteira de contato. E, ainda
que os hábitos e as possibilidades não assegurem, por si só, a realização do
contato final para o excitamento antes inibido e agora disponível como
angústia, é a partir deles que o agente criador pode voltar à cena, qual seja
esse agente, a função de ego. O que significa que a função de ego não é uma
criação a partir do nada. Ela é uma criação condicionada, feito liberdade de
situação, que só pode ser exercida na mediação do mundo e dos homens, a partir
do que neles é passado e em direção ao futuro. Trata-se de uma liberdade que se
exerce num campo, do qual o clínico também participa. Merleau-Ponty, ao
comentar a maneira como o "tratamento psicanalítico” cura - o que de forma
alguma se deve às razões do analista ou aos méritos da metapsicologia
psicanalítica - descreve essa liberdade como uma sorte de criação engajada, que
se faz no âmbito da coexistência entre o clínico e o paciente. Nas palavras de
Merleau-Ponty (1945, p. 610):
O tratamento
psicanalítico não cura provocando uma tomada de consciência do passado, mas em primeiro lugar
ligando o paciente ao seu médico por novas relações de existência. Não se trata
de dar um assentimento científico à interpretação psicanalítica e de descobrir
um sentido nocional do passado, trata-se de revivê-lo como significando isto ou
aquilo, e o doente só chega a isso vendo seu passado na perspectiva de sua
coexistência com o médico. O complexo não é dissolvido por uma liberdade sem
instrumentos, mas antes deslocado por uma nova pulsação do tempo que tem seus
apoios e seus motivos.
Entendido como
reabilitação da função de ego, o experimento é uma criatividade que se
constitui no campo. Ou, então, o experimento é a própria criatividade do campo
- e não a manifestação exterior de um poder espiritual que habitaria o clínico
ou o consulente. O experimento é a solução que o consulente - a partir do que
ele pôde viver na relação terapêutica - encontrou para o excitamento antes
inibido e agora ressurgido como angústia. Conforme Perls; Hefferline e Goodman
(1951, p. 173-174):
(a) criatividade é inventar uma
nova solução; inventá-la tanto no sentido de descobri-la quanto no de
elaborá-la; contudo, essa nova maneira não poderia surgir no organismo ou no
seu “inconsciente”, porque aí só há maneiras conservativas; nem poderia estar
no ambiente novo como tal, porque mesmo se topássemos com ela aí, não a
reconheceríamos como sendo nossa. Não obstante, o campo existente que se
converte no momento seguinte é rico em novidade potencial, e o contato é a
realização. A invenção é original; é o organismo que cresce, que assimila
substâncias novas e se nutre de novas fontes de energia. O self não pode saber, de antemão, o que inventará,
porque o conhecimento é a forma do que já ocorreu; e certamente um terapeuta
não o sabe, por que não pode fazer crescer o crescimento de outra pessoa - ele
simplesmente é parte do campo. Mas ao crescer o self se arrisca - arrisca-se com sofrimento caso tenha evitado durante muito
tempo arriscar-se, e por conseguinte deve destruir muitos preconceitos,
introjeções, ligações com o passado fixado, seguranças, planos e ambições;
arrisca-se com excitamento se puder aceitar viver no presente (1951, p.
173-174).
Ora, o
experimento - enquanto reabilitação da função de ego - é aquilo que faz o campo
crescer, é aquilo que introduz, na relação clínica, uma novidade que nem
clínico nem consulente poderiam esperar. Seja no interior da sessão, ou no
intervalo entre elas, se o clínico souber autorizar um experimento, então algo
irá acontecer, uma transformação no consulente poderá ser percebida. O
consulente se mostrará, após a vivência clínica (que funcionou como
experimento), ou no retorno à próxima sessão, investido de uma disposição para
agir e, não raro, capaz de elaborar algo a respeito de si como nem mesmo o melhor dos
hermeneutas poderia sonhar em fazer. Não é incomum, inclusive, que o consulente
se mostre capaz de nomear o excitamento antes inibido. Nada disso, entretanto,
se confunde com bem-estar, pois, tal disposição pode estar empenhada, por
exemplo, na retomada de um luto mal feito, de uma agressão sofrida. O que,
fundamentalmente está diferente é que, ao contrário do que acontecia antes,
quando enredado em seus próprios ajustamentos neuróticos; agora, o consulente
não implicará mais o clínico em seus projetos. Aquele apelo de antes dá lugar a
uma autonomia - a qual não está desprovida de gratidão. Diferentemente de
antes, o consulente não precisa mais pedir amor ao clínico. O consulente agora
aprendeu a amar, a cuidar, a agradecer, a sofrer... Mais ainda, ele aprendeu a
habitar um campo, frequentar um laço social, sem dele “depender”. Doravante,
ele pode seguir por si.
O que se espera de uma intervenção gestáltica em ajustamentos
neuróticos é que o protagonista social desses ajustamentos, precisamente, o
consulente, possa desenvolver, não importa em quanto tempo de terapia, a
capacidade para pontuar, ele próprio, o modo como se interrompe e que possa
estabelecer, por ele mesmo, novos ajustamentos criadores. O que se espera é que
ele possa praticar, por conta própria, a Gestalt-terapia, não como profissão ou
identidade social, mas como postura frente aos seus próprios excitamentos.
Nesse sentido, espera-se dele que não precise de ninguém como modelo, lei, réu,
cuidador, fã... Mas que, ainda assim, possa estabelecer laços sociais por cujo
meio continue a criar, nos dados concretos da atualidade, possibilidades de
repetição disso que ninguém jamais faz cessar, precisamente, a impessoalidade
de excitamentos já realizados que arrastamos feito rabo de cometa, qual corpo
habitual ou função id.
O momento da alta é sempre uma decisão do consulente. A menos que,
por alguma razão extemporânea ao processo terapêutico, o clínico não possa mais
continuar o ofício, é do consulente a prerrogativa de decidir quando parar. O
que não quer dizer que a simples decisão de parar seja ela mesma uma alta. Os
consulentes podem parar por outras razões, frequentemente por terem encontrado,
noutros tipos de laço social, a parceria necessária para sustentar os ajustamentos com os quais se ocupavam em disfarçar a ansiedade sentida. Mas quando
se trata de alta, o que se passa é algo muito diferente, não obstante o clínico
nunca ter absoluta certeza das razões que levaram seu consulente a encerrar o
processo. De toda sorte, pouco importa ao clínico ter essa certeza - caso ela
fosse possível. Ao clínico importa a alta que, a cada sessão, ele dá a si
mesmo: "eu não dependo desse consulente para fazer o que faço, cobrar o
que cobro, criar o que crio...”. Se for capaz de renovar essa autorização de
si, muito provavelmente poderá testemunhar a autorização de outros clínicos,
formados em seu consultório, não como profissionais em psicoterapia, mas como agentes do
contato nos campos
em
que estiverem inseridos.
O clínico sabe,
a partir de seu próprio processo, que o momento da alta no consulente envolve
muitas etapas. Ela começa a se configurar no momento em que, pela primeira vez,
o consulente se mostra capaz de ir além da inibição reprimida. Tal significa
dizer, a alta começa no momento em que o consulente desempenha uma formação
reativa contra algum dado na fronteira de contato, o qual pode ser o próprio
clínico. A inibição reprimida foi desmascarada e, com ela, a co-presença do
excitamento não assimilado, investido de tensão material e, portanto, fonte de
ansiedade. O consulente então abre mão dos ajustamentos neuróticos habituais em
proveito daquele excitamento. Já não há mais a ansiedade de antes. Há em vez
disso uma angústia, que o consulente trata de atravessar criando novos ajustamentos,
novas gestalten. Por meio dessas criações, às quais a Gestalt-terapia chama de
experimentos, o consulente ativa a função de ego antes alienada em favor da
inibição reprimida. Ele se sente agora “energizado” para enfrentar, em
quaisquer novas situações, os excitamentos de sempre, as repetições que fazem
de sua vida a expressão singular desse campo do qual nunca está apartado e que,
ademais, inclui o clínico.
Mas isso não significa que a inibição de antes deixou de existir.
Nada que tenhamos vivido como situação de contato (mesmo aquelas situações que
permaneceram abertas) escapa de ser retido - a menos que estejamos diante de um
comprometimento da função id, o que exigirá da nossa parte ajustamentos psicóticos. Em não
havendo tal comprometimento, aquilo que foi retido não se aniquila jamais,
mesmo as inibições reprimidas devassadas no processo terapêutico. Elas
continuam firmes e fortes, muito embora já não impliquem, como implicavam antes, um sentimento
ansiogênico. Os consulentes que puderam atravessar suas próprias inibições
reprimidas têm a estas como a uma fortuna muito bem guardada e que, não obstante havê-los
feito sofrer, ainda assim legaram muitas criações, criações sintomáticas, por
meio das quais também obtiveram muita satisfação, obtiveram satisfação possível
- como no caso dos ajustamentos neuróticos. Nesse sentido, não é incomum que os
consulentes, depois de haverem efetivado a alta em relação aos seus próprios
sintomas, continuem sentindo "saudades”. Os consulentes já não sofrem como
antes, mas, nem por isso, deixam de sentir, como a um horizonte familiar
co-presente, às criações de outrora. Dizendo de outro modo, eles ainda sentem,
lado a lado com a angústia da criação, uma espécie de nostalgia daquilo que,
por essa razão, tornam a repetir: os atos inibitórios de antes.
Eis então o clínico
(ou, se quiserem, o clinicante): alguém que não apenas foi além de suas
próprias inibições em proveito da criação, mas que também continua a sentir o que antes
sentia, porquanto os atos, as inibições não podem ser preteridas. Mas ele já
não se paralisa na inibição. Ele cria a partir dela. Continua a senti-la, como
a uma paixão antiga, ou como a uma perda por morte inesperada, que deixou de
doer, mas ainda paira no ar como bruma. Depois da alta, ninguém deixa de
sofrer. Aprende a produzir com o sofrimento. Amplia-se.
MERLEAU-PONTY, Maurice. (1945). Fenomenologia
da percepção. Trad. Carlos Alberto Ribeiro de Moura. 2
d. São Paulo: Martins Fontes, 1996.
PERLS, Frederick;
HEFFERLINE, Ralph; GOODMAN, Paul. (1951). Gestalt
Therapy: excitement and growth in the human personality. Second Printing. New York: Delta Book, 1965.Tradução utilizada: Gestalt-Terapia. Trad. Fernando Rosa Ribeiro. São Paulo: Summus, 1997.
PERLS, Frederick. (1942). ”Ego, fome e agressão”. Trad. Georges Boris. São Paulo: Summus, 2002.
. (1973). A abordagem
Gestáltica e Testemunha Ocular da Terapia. Trad.
José Sanz. Rio de Janeiro: Zahar, 1977.
RIBEIRO, Walter. (1998). Existência e essência - desafios teóricos e práticos das psicoterapias relacionais. São Paulo: Summus.
1 Acompanhamos Walter Ribeiro (1998, p.
64), quando diz: “Fritz Perls, por exemplo,
se cansou de dizer que a Gestalt-terapia não se interessa por problemas (mas se
cansou também de cuidar deles em suas demonstrações), e talvez por isso, ou
pelos eternos mal-entendidos teóricos (ou simples desconhecimento deles?), o
que mais se vê é Gestalt-terapetuas se debatendo e tentando resolver problemas
sem a menor consciência do que estão fazendo e sem a menor consciência de que o
propósito da terapia que buscam e que dizem estar praticando não é este. A
resolução de problemas, em geral, faz o oposto do propósito da integração das
partes alienadas: satisfaz a grandiosidade do terapeuta e desenvolve ainda mais
o sistema de papéis de ambos”.
" É por meio da noção de experimento que Perls retoma, agora no campo da
intervenção clínica, o pensamento diferencial de Friedlaender. O experimento é
sempre uma tentativa de reabilitação da polaridade da inibição reprimida,
precisamente, a função de ego. Ou, ainda, o experimento é sempre a
intensificação da polaridade da ansiedade, que é a angústia. Trata-se numa
aposta do clínico na capacidade do consulente para criar não na direção da
inibição dos excitamentos, mas da expansão deles junto a novos campos de
presença.