domingo, 18 de abril de 2010

“Por que um corvo se parece com uma escrivaninha?”

O Chapeleiro foi o primeiro a quebrar o silêncio: “Que dia do mês é hoje?”, disse, dirigindo-se a Alice. Ele tinha tirado seu relógio do bolso e estava olhando-o com preocupação, sacudindo-o de quando em quando e segurando-o junto ao ouvido.
Alice refletiu um pouco e depois respondeu: “É dia quatro.”
Dois dias atrasado!” suspirou o Chapeleiro. “Eu disse a você que a manteiga não ia adiantar!” acrescentou ele, olhando furioso para a Lebre de Março.
Mas era a melhor manteiga!” respondeu a Lebre de Março com brandura.
Sim, mas devem ter caído migalhas de pão”, resmungou o Chapeleiro, “você não devia ter usado a faca de pão na manteiga.
A Lebre de Março pegou o relógio e olhou-o melancolicamente; então o mergulhou na sua xícara de chá e olhou-o de novo: mas não pôde encontrar nada mais interessante para dizer
do que sua primeira observação “era a melhor manteiga, juro.”
Alice estivera olhando tudo por cima do ombro com certa curiosidade. “Que relógio engraçado!” observou. “Ele mostra o dia do mês, mas não mostra as horas!
Por que deveria?” murmurou o Chapeleiro. “Por acaso o seu relógio mostra o ano?
Claro que não”, respondeu Alice prontamente: “mas é porque se permanece no mesmo ano durante muito tempo.
É exatamente o caso do meu”, disse o Chapeleiro.
Alice sentiu-se terrivelmente embaraçada. O comentário do Chapeleiro parecia não fazer o menor sentido, embora era certo que falassem a mesma língua.
Não o compreendo bem”, disse ela da maneira mais polida possível.
O Caxingulê adormeceu de novo”, disse o Chapeleiro, despejando um pouco de chá quente no nariz dele. O Dormidongo abanou a cabeça com impaciência e disse, sem abrir os olhos: “claro, claro, é justamente o que eu ia dizer.
Você já decifrou a adivinhação?” perguntou o Chapeleiro, voltando-se outra vez para Alice.
Não, desisto”, respondeu Alice. “Qual é a resposta?
Não faço a mínima idéia”, disse o Chapeleiro.
Nem eu”, disse a Lebre de Março.
Alice suspirou enfadada. “Acho que você deveria aproveitar melhor o tempo”, disse ela, “em vez de gastá-lo com adivinhações sem resposta.
Se você conhecesse o Tempo tão bem quanto eu conheço”, disse o Chapeleiro, “você não falaria em gastá-lo, como uma coisa. Ele é alguém.
Não sei o que você quer dizer”, disse Alice.
É claro que você não sabe!” disse o Chapeleiro, inclinando a cabeça com desdém. “Eu diria até mesmo que você nunca falou com o Tempo!
Talvez não”, respondeu Alice com cautela, “mas sei que devo marcar o tempo quando aprendo música.
Ah! Isso explica tudo!” disse o Chapeleiro. “Ele não suporta ser marcado. Agora, se você mantivesse com ele boas relações, ele faria qualquer coisa que você quisesse com o relógio. Por exemplo, suponha que fossem nove horas da manhã, justamente a hora de começarem as lições: você teria apenas de sussurrar uma dica ao Tempo, e o ponteiro giraria num piscar
de olhos: uma e meia, hora do almoço!
(“Como eu gostaria que fosse assim mesmo”, sussurrou a
Lebre de Março para si mesma.)
Seria fantástico, com certeza”, disse Alice, pensativa; “mas, então, eu ainda não estaria com fome, não é?
Não a princípio, talvez”, disse o Chapeleiro, “mas você poderia permanecer à uma e meia por quanto tempo quisesse.
É assim que você faz?” indagou Alice.
O Chapeleiro balançou a cabeça com desgosto: “Eu não!”, disse. “Nós brigamos em março passado... logo antes de ela ficar louca, sabe...” (apontou com sua colher para a Lebre de Março), “foi no grande concerto oferecido pela Rainha de Copas, e eu tinha de cantar:

Pisca, pisca, morceguinho, Aonde vais nem adivinho.

Você conhece a canção, não é?
Já ouvi algo parecido”, disse Alice.
Paródia do poema infantil “A Estrela”, de Jane Taylor: “Pisca, pisca, estrelinha...
E continua, sabe”, emendou o Chapeleiro, “assim:

‘Lá no céu, como travessa
Para chá, voas depressa.
Pisca, pisca—’

Nesse ponto o Caxinguelê estremeceu e começou a cantarolar, enquanto dormia: “pisca, pisca, pisca, pisca...” E continuou por tanto tempo que tiveram de dar-lhe um beliscão para que parasse.
Bem, eu nem acabara o primeiro verso”, disse o Chapeleiro, “quando a Rainha bradou: ‘Ele está matando o tempo! Cortem-lhe a cabeça!’”
Mas que selvageria!” exclamou Alice.
E desde então”, continuou o Chapeleiro num tom pesaroso, “ele não faz nada do que eu peço! São sempre seis horas!
É, é isso mesmo”, disse a Lebre de Março com um suspiro, “é sempre hora do chá, e nós não temos tempo de lavar a louça nos intervalos.
É por isso que vocês ficam girando em torno da mesa?” disse Alice.
Exatamente”, disse o Chapeleiro, “conforme as louças vão ficando sujas.
Mas o que acontece quando vocês retornam para o começo?” Alice ousou perguntar.
Que tal se mudássemos de assunto?

(Lewis Carroll: Aventuras de Alice no País das Maravilhas, 1865, p. 82-87)

quinta-feira, 15 de abril de 2010

Um cego escreve:

Isso levaria imediatamente a se pensar que há muitos acontecimentos que podem diminuir a satisfação de viver de maneira muito mais afetiva do que a cegueira. Esse pensamento é interamente saudavel. Desse ponto de vista, podemos perceber, por exemplo, que um defeito como a incapacidade de aceitar o amor humano, que pode diminuir o prazer de viver até quase esgota-lo, é muito mais trágico do que a cegueira. Mas é pouco comum que o homem com tal doença chegue a aperceber-se dela e, portanto, a ter pena de si mesmo.

(Erving Goffman: Estigma, 1988, p. 24)

quarta-feira, 7 de abril de 2010

"Sininho não era de todo má. Ou melhor, nesse momento ela estava sendo toda má, mas, por outro lado, muitas vezes ela era toda boa. As fadas têm que ser sempre ou uma coisa ou outra porque, como são tão pequenininhas, infelizmente só há lugar para um sentimento de cada vez”

(James Matthew Barrie: Peter Pan, 2006, p. 74).